17 novembro 2005

História Cultural

“Nunca será demais repetir que as chamadas ‘disciplinas’ em que a nossa organização acadêmica se baseia não são mais do que técnicas; são meios com vista a um fim, mas nada mais. É claro que o historiador da música precisa de aprender a ler pautas e o historiador da economia deve ser capaz de lidar com estatísticas. Mas será triste o dia em que deixarmos as técnicas que aprendemos ou ensinamos ditarem as perguntas que podem ser feitas nas nossas universidades.
Se o historiador cultural não tem voz nos conselhos acadêmicos, é porque não representa uma técnica, uma disciplina. Contudo, não creio que deva seguir o exemplo dos seus colegas dos departamentos de sociologia, firmando pretensões a um método e terminologia próprios, pois, aprenda o que aprender com essa abordagem do estudo das civilizações e das sociedades ou com outras, a sua principal preocupação deverá centrar-se, ainda assim, no individual e no particular, e não nesse estudo de estruturas e padrões raramente isento de holismo hegeliano. Por essa mesma razão, não crio que disputasse o cacofônico rótulo de disciplina interdisciplinar, visto que tal reivindicação implica a crença na roda hegeliana e na necessidade de contemplar as aparentes dádivas divinas, que são os aspectos isolados de uma cultura a partir de um centro privilegiado. O propósito deste trabalho é dar a entender que esta roda hegeliana é, de fato, um diagrama laicizado do plano divino; a busca de um centro que determina o padrão global de uma civilização não é, por conseqüência, senão a busca de uma iniciação aos caminhos de Deus com os homens. Contudo, espero ter também deixado clara a razão por que a desapontadora verdade de que não podemos ser omniscientes não deve levar-nos, de modo algum, a adotarmos uma atitude de ignorância tacanha. Se as humanidades hão-de sobreviver, então não podemos, pura e simplesmente, dar-nos ao luxo de adotarmos este grau de profissionalização.
Sei que os sermões contra a especialização se vendem a pataco e que, provavelmente, não impressionarão os que sabem quanto custa dominar até um pequeno campo de investigação, mas gostaria de acentuar aqui a diferença essencial que a este respeito existe entre o papel da investigação nas ciências exatas e nas ciências humanas. Se bem entendo a situação, o cientista deve sempre trabalhar nas fronteiras do conhecimento. Pode, pois, escolher um pequeno setor em que as hipóteses podem ser postas à prova e revistas por meio de experiências, eventualmente dispendiosas e demoradas. Não há dúvida de que também ele deveria poder acompanhar um campo mais amplo e ser versado nas disciplinas mais próximas da sua, mas, em última análise, é mais valorado pelas suas descobertas do que pelos seus conhecimentos. Defendo que, com o humanista, é diferente. A educação humanística visa, primeira e acima de tudo, o conhecimento, aquele conhecimento a que se chamava ‘cultura’. Dantes esta cultura era, em grande medida, transmitida e absorvida em casa e nas viagens. As universidades não se preocupavam com assuntos como história ou literatura, arte ou música. O seu objetivo era principalmente vocacional e mesmo a familiarização com os clássicos, embora valorizada pela sociedade, tinha as suas razões vocacionais. Ninguém achava que as universidades serviam para falar aos estudantes sobre Shakespeare ou Dickens, Miguel Ângelo ou Bach. Essas eram coisas que as pessoas ‘cultas’ sabiam. Não eram objeto adequado para exames nem para investigação. Sucede que tenho alguma simpatia por esta abordagem antiquada, por achar que o humanista é verdadeiramente diferente do cientista no valor relativo que atribui ao conhecimento e à investigação. É mais importante conhecer Shakespeare ou Miguel Ângelo do que ‘fazer investigação’ a respeito deles. Pode a investigação não fazer surgir nada de novo, mas do conhecimento brota sempre prazer e enriquecimento. Parece mil vezes lamentável que as nossas universidades estejam tão organizadas que não se dê por esta diferença. Muito do mal-estar das ciências humanas poderia desaparecer do dia para a noite se se tornasse claro que não precisam imitar as ciências exatas para continuarem a ser respeitáveis. Pode haver uma ciência da cultura, mas pertence à antropologia e à sociologia. O historiador cultural quer ser um acadêmico, não um cientista. Quer proporcionar aos seus alunos e aos seus leitores o acesso às criações de outros espíritos; aqui a investigação é ocasional, o que não significa que nunca seja necessária. Podemos ter desconfiança quanto às interpretações atuais de Shakespeare ou ao modo como Bach é hoje executado e querer chegar à verdade nessas matérias. Todavia, em toda esta investigação o que o historiador cultural verdadeiramente ambiciona é servir a cultura, e não alimentar a industria acadêmica.
Receio que esta industria ameace tornar-se inimiga da cultura e da história cultural. Poucas pessoas serão capazes de ler e escrever ao mesmo tempo, e, enquanto prosseguirmos nos nossos problemas de investigação mais ou menos importantes, as obras-primas do passado por ler olham reprovadoramente para nós do alto das prateleiras.
Mas quem sente hoje essa reprovação? No nosso mundo o que ecoa reprovadoramente é a frase ‘um acadêmico enclausurado’. O historiador cultural ganha um salário pago pelos contribuintes e deve servi-los o melhor que pode.
Espero ter tornado claro em que consiste esse serviço. Bem ou mal, as universidades assumiram grande parte da função que antes pertencia ao lar, a de transmitirem os valores da nossa civilização. Não podemos esperar que alguns estudantes lhes agradeçam mais por isso do que por vezes agradeciam aos pais. É certo que queremos que esses valores sejam postos à prova e examinados, mas para o fazerem eficientemente os críticos têm de conhecê-los. Portanto, não vejo por que havemos de ter vontade de pedir desculpa àqueles que nos exortam a preocuparmos-nos mais com o presente do que com o passado. O estudo da cultura é, em grande medida, o estudo das continuidades e antes queremos transmitir aos nossos estudantes este sentidos de continuidade do que o de aceitação acrítica. Queremos que adquiram o hábito mental de procurarem estas continuidades não só nos limites do seu campo específico, mas em todas as manifestações culturais que os rodeiam.”

- Sir Ernst H. Gombrich. Para uma História Cultural. Lisboa: Editora Gradiva, 1994 (1969), pp. 96-100.

Um comentário:

Anônimo disse...

Gombrich me da sempre a sensação de retorno ao lar. Bjs.