03 setembro 2004

IS IT SO?

A COMUNIDADE
- Jean-Pierre Vernant
“Os gregos inventaram a cidade, e o paradoxo é que a grandeza desta é, ao mesmo tempo, sua fragilidade. A cidade não é mais dirigida por um soberano único. Uma sociedade hierárquica tomou o lugar de uma sociedade igualitária na qual todos os homens estão a uma distância igual do centro e participam das discussões. Mas o essencial, em uma comunidade, é o sentimento de “philia” – a amizade – que seus membros nutrem uns pelos outros. É esse o cimento humano. Ora, se existe uma assembléia ou um debate, haverá obrigatoriamente dois discursos contraditórios que serão decididos pelo voto. Conseqüentemente, a cidade se divide, e essa divisão significa que a democracia traz em seu bojo, necessariamente, a possibilidade de negar seu fundamento: a amizade entre pessoas que são todas semelhantes e estão em pé de igualdade. Em dado momento, essa homogeneidade gera a divisão e a luta.
"Os gregos nos legaram o sentimento da comunidade. E também o fato de que o essencial na vida do homem não é o trabalho, mas a vida política, o contato com os outros nas assembléias, as discussões nos banquetes. Todo o interesse da vida reside precisamente naquilo que não é utilitário. É uma idéia muito diferente da nossa. O trabalho não é a base do vínculo social. Para os gregos, o fato de cada artesão ser especializado – o fato de que um produza sapatos, outros, fivelas, e, ainda outro, jarros – é a prova de que essa divisão do trabalho não pode constituir o fundamento de uma sociedade, já que o fundamento da sociedade é aquilo que os homens possuem de semelhante.
"Logo, o que deve unir os homens é aquilo que mostra o mito de Protágoras, conforme relatado por Platão [428-348 a. C.], quando Protágoras [485-410 a. C.] explica o que aconteceu no momento da criação das espécies. Prometeu e seu irmão Epimeteu são encarregados de dotar cada espécie animal da forma, das qualidades e das forças que vão caracterizá-la. Eles tomam o cuidado de fazer com que essas qualidades se equilibrem. Se um animal ganha força e tamanho, ele não terá rapidez. Se ele é mais frágil, será dotado de rapidez ou da capacidade de voar, para que possa sobreviver. Depois eles criam os homens, e, no momento de sua criação, não restam mais forças e qualidades suficientes. Logo, o homem surge desarmado. Para que a espécie humana não desapareça em razão de sua fragilidade, o que se faz? Dota-se cada um de saberes técnicos, de modo a compensar por aquilo que lhe falta. Ele é sensível ao frio: as pessoas vão fiar e tecer a lã, produzir tecidos. Ele tem pés frágeis: ganhará sapatos.
"Assim, cada saber técnico é dado ao homem, e é ao trocar seus produtos que estes vão poder constituir uma sociedade. Mas as coisas não funcionam direito – porque cada um se ocupa de seus assuntos. Os homens se digladiam. Zeus fica sabendo disso e, para salvá-los, encarrega Hermes de remediar essa situação catastrófica. É assim que Hermes dota os homens do senso da honra e da justiça. Nesse momento, todos poderão constituir uma cidade, não por possuírem os saberes técnicos, mas porque todos compartilham a mesma idéia daquilo que é honrado e justo.”

- In: CADERNO MAIS, FOLHA DE SÃO PAULO, 8 de Agosto de 2004. Original na revista “Nouvel Observateur”, Tradução de Clara Allain.

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